segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O tempo nosso de cada dia roubado


O sistema capitalista transformou o trabalhador num verdadeiro escravo do tempo, sem ter condições de lazer ou, em muitos casos, de receber um salário digno e proporcional a suas horas de dedicação no emprego
por Yago Euzébio Bueno de Paiva Junho*

O tempo não é um senhor tão bonito assim, como na música de Caetano Veloso, pelo menos para os trabalhadores. Tempo curto para o sono. Tempo longo para chegar ao trabalho. Tempo monótono dentro da fábrica. Tempo marcado pelo relógio, cumprimento de meta. Tempo curto do salário. Tempo roubado do lazer. O tempo futuro que a morte não dá tempo de ver. Tempo é dinheiro. Tempo encarnado, que desencarna o corpo moído e espremido na falta de tempo diária.
Karl Marx, em sua análise mefistofáustica do capitalismo, avalia a besta a partir de sua célula básica, que é a mercadoria. Baixando Aristóteles, dispara: todo objeto que possui ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. De produção artesanal, até o século XVII, à industrial, na segunda metade do século XVIII, a mercadoria refez o tempo da roça. O supermercado venceu a horta. A cidade, com suas entranhas de asfalto, abriu os portões de suas fábricas no enclausuramento do tempo operário. A rua substituiu a casa, com suas relações informais. O sentimento dá lugar ao contrato.
Nessa viagem alucinada, do rural ao urbano, a sociedade passa por uma profunda reestruturação. Um mundo admirável e, ao mesmo tempo, trágico desce à Terra. Para falar como Hegel, a civilização dá um salto dialético e o espírito absoluto se torna concreto. A Inglaterra se transforma na vedete do teatro capitalista. Reinaugura a vida e os homens se dividem em múltiplas funções. Função burguesa e função proletária. O capital e o trabalho se entrelaçam, misturam-se, deixando o céu cinza do carvão, a riqueza para ser concentrada e a miséria para ser dividida.
O capital » Das Kapital, em alemão, ou O capital, é um conjunto de livros de Karl Marx, que faz uma crítica contundente da economia política do capitalismo. Lançado o primeiro livro em 1867, ainda hoje é considerado o marco do pensamento socialista marxista. A obra expõe vários conceitos econômicos completos, como maisvalia, capital constante e capital variável, análise sobre o salário, sobre a acumulação primitiva, em resumo, aborda todos os aspectos do modo de produção capitalista.
Uma nova corrida ao ouro metamorfoseado em papel pintado. A exploração, agora, não é mais do subsolo, mas, também, do trabalhador. Esse pequeno produtor rural, destruído em sua impossibilidade de concorrer com a fábrica, transforma-se em mão de obra barata e congestiona os subúrbios enfeitados de cortiços. Marx viu essa cena quando chega em Londres, por volta dos meados trabados anos 60 do século XIX. Daí sua obsessão em estudar a estrutura de funcionamento do capitalismo para entender quais as engrenagens do sistema que permitem tanta desigualdade na distribuição das riquezas.
No seu estudo, Marx chega à constatação que a finalidade última da produção de mercadoria é extração de mais-valia. Mais-valia é o roubo do tempo de trabalho do operário. É a usurpação do trabalho pela variante tempo. E existem dois tipos: a absoluta e a relativa. A mais-valia absoluta ocorre quando aumenta a jornada de trabalho, sem aumentar, proporcionalmente, o salário. A mais-valia relativa é quando a tecnologia substitui mão de obra, ou seja, menos pessoas produzem mais.
A sociedade passou por profundas mudanças, onde capital e trabalho se entrelaçaram, deixando a riqueza para ser concentrada e a miséria para ser dividida
A jornada de trabalho, relatada no capítulo oito de O capital, revela a exploração absurda a que os trabalhadores estavam submetidos. Crianças trabalhando em minas de carvão - tempo da infância roubado. Moças morrendo, depois de trabalharem três dias e três noites consecutivas em confecções. Ambiente de trabalho insalubre, mutilações, problemas psicológicos, em suma, a saúde dançada. Dezesseis horas de trabalho. O corpo por um fio. Famílias desestruturadas, casas apinhadas de gente. Faltam higiene, saneamento e perspectiva de prosperidade. O tempo operário marcava encontro com sua miséria existencial.
No seu estudo, Marx chega à constatação de que a finalidade última da produção de mercadoria é extração de maisvalia. Mais-valia é o roubo do tempo de trabalho do operário. É a usurpação do trabalho pela variante tempo. E existem dois tipos: a absoluta e a relativa. A maisvalia absoluta ocorre quando aumenta a jornada de trabalho, sem aumentar, proporcionalmente, o salário. A mais-valia relativa é quando a tecnologia substitui mão de obra, ou seja, menos pessoas produzem mais
Organizações
É nesse contexto que surgem as organizações sindicais. As primeiras lutas foram pelo estabelecimento de uma jornada de trabalho de dez horas e a proibição da contratação de crianças com menos de dez anos pelas fábricas. O que estava na balança era a luta pela sobrevivência. Aqui, ainda não existia a preocupação com a qualidade do trabalho e com a saúde. O importante era manter, minimamente, o corpo em funcionamento. Tempo a menos na fábrica, tempo a mais de vida. A contagem temporal do relógio de ponto, sincronizando com a contagem do relógio biológico. Detalhe: o tempo da fábrica ditava as normas do tempo fora dela.

O taylorismo, com sua organização científica do trabalho, sua rigidez de funções, individualizou os trabalhadores na linha de produção. Produção fragmentada, as funções cronometradas. A separação do trabalho intelectual e do manual. A perda completa de autonomia e controle do próprio trabalho. O trabalhador se transforma em uma máquina programada para execução de uma só tarefa. O trabalho maçante, acompanhado pela depreciação do tempo, e a preocupação constante de não ficar doente. O tempo da doença não era um direito nessa época.
Taylorismo » O conceito de taylorismo é uma concepção de produção, baseada em um método científico de organização do trabalho. Foi elaborado pelo engenheiro norte-americano Frederick W. Taylor (1856-1915) e exposto, em 1911, na publicação da obra Os princípios da administração. A partir dessa concepção, a atividade industrial foi fragmentada, pois cada trabalhador passou a exercer uma função específica no sistema industrial. A organização foi hierarquizada e sistematizada e o tempo de produção passou a ser cronometrado.
Para se proteger dessa destruição, segundo Christopher Dejours, o trabalhador vale-se da ideologia defensiva. Ideologia defensiva é um mecanismo, que anda de mãos dadas ao sentimento coletivo da vergonha. Em meio à miséria operária, estar doente não pega bem. Sinônimo de vagabundagem, corpo mole, esconde-se o sofrimento e a doença até o limite possível. Doença significa tempo longe da fábrica e isso afeta o bolso do operário. O tempo da cura era o tempo de voltar o ânimo. Força para sair da cama e paciência para aguentar o trampo. Era preciso se defender até da doença, escamoteando-a para manter a sobrevivência.
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O pequeno produtor rural foi destruído em sua impossibilidade de concorrer com a fábrica, transformando-se em mão de obra barata
Outro mecanismo de defesa, utilizado para abrir frestas no tempo massificado com momentos lúdicos, era a vadiagem, combatida ferrenhamente pelo taylorismo: "A vadiagem foi assim denunciada como perda de tempo, de produção e de dinheiro. O que Taylor condena, este vício da classe trabalhadora, é, talvez, outra coisa bem diferente. Nós tentaremos mostrar que, além de uma simples freada na produção, este tempo, aparentemente morto, é, na realidade, uma etapa do trabalho, durante a qual agem operações de regulagem do binômio homem-trabalho, destinadas a assegurar a continuidade da tarefa e a proteção da vida mental do trabalhador" (DEJOURS, 1992, p. 37).
O mesmo autor salienta que a repetição das tarefas era tão grande que, mesmo quando fora da fábrica, os trabalhadores cronometravam todos os seus atos. A rotina fabril dominava a rotina caseira. Rompia-se, então, a separação que existia no mundo burguês entre a casa e a rua. Assim, o tempo do ócio em substituição ao negócio era roubado. As dores, os problemas cardiovasculares e de postura, o alcoolismo eram uma constante.

As primeiras lutas foram pelo estabelecimento de uma jornada de trabalho de dez horas e a proibição da contratação de crianças com menos de dez anos pelas fábricas. O que estava na balança era a luta pela sobrevivência. Aqui, ainda não existia a preocupação com a qualidade do trabalho e com a saúde. O importante era manter, minimamente, o corpo em funcionamento. Tempo a menos na fábrica, tempo a mais de vida
O capital denuncia a exploração absurda que os trabalhadores estavam submetidas, inclusive com crianças trabalhando em minas de carvão
Mudanças
Esse panorama altera-se com a Primeira Guerra Mundial onde, por força do recrutamento para o campo de batalha, as fábricas veem-se contingenciadas no tocante à mão de obra. Tornou-se necessário pensar no bem-estar do trabalhador, afinal não era fácil sua reposição. Inicia o movimento em defesa da saúde do trabalhador, que fora negligenciada, em razão da necessidade de sobrevivência do operário. O Estado passa a ter um papel ativo na regulamentação do trabalho com a criação de leis trabalhistas e a implantação da medicina do trabalho. A qualidade do trabalho desponta no horizonte das discussões acerca da organização do trabalho na fábrica.
As fábricas passam por alterações físicas para atender as novas exigências de melhoria nas condições de trabalho. Dejours (1992, p. 25) fala que: "Por condição de trabalho é preciso entender, antes de tudo, ambiente físico (temperatura, pressão, barulho, vibração, irradiação, altitude etc.), ambiente químico (produtos manipulados, vapores e gases tóxicos, poeiras, fumaças etc.), o ambiente biológico (vírus, bactérias, parasitas, fungos), as condições de higiene, de segurança, e as características antropométricas do posto de trabalho". Precisou que uma guerra fizesse com que o número de trabalhadores disponíveis caísse para que essa reflexão se tornasse pauta de discussões nos meios empresariais e políticos.
"Com o domínio dos meios de comunicação de massa (videoesfera), a televisão invadiu todos os lugares, o bar, o motel, o restaurante, o avião, o ônibus, o táxi, o hospital, o cemitério. A sensibilidade ao ruído converteu-se em um passaporte à loucura ou à condenação a uma existência a-social [...]" (VASCONCELLOS, 2013, p. 142).
Outro aspecto significativo: a constante relação dos trabalhadores com o sofrimento. O sofrimento é gerado quando o pêndulo insatisfação/desejo pende para o primeiro. É duro lidar com o prazer sempre adiado. Uma das causas da depressão, oriunda da insatisfação com o trabalho, é o fato de que o trabalhador tem pouquíssima liberdade para improvisar e se libertar das amarras do que lhe foi preestabelecido. O tempo no trabalho que não serve para atingir as aspirações pessoais. Fica o sentimento de inutilidade. Finda a motivação, sucumbe o desejo. Trabalho sem significação. Tempo desperdiçado. Moinho de gastar sonhos. O homem forçando ao limite o seu trágico desinteresse. Não há aparelho psíquico que segura essa barra pesadíssima. Para completar o quadro, as horas fora da fábrica não aliviam o sentimento de fracasso.
Com o desenvolvimento do capitalismo, uma previsão de Marx falhou: a de que a fábrica seria o lugar que abrigaria a maioria dos trabalhadores. O setor da economia que mais utiliza a força de trabalho é o setor de serviços. Esses trabalhadores estão nos escritórios, consultórios, em salas com ar-condicionado etc. Convenhamos que, do ponto de vista físico, o esforço é muito menor do que aqueles que estão no chão das fábricas, nas linhas de produção. Entretanto, esses trabalhadores não estão imunes às pressões do tempo, pelo contrário, se o físico não é muito exigido, o psicológico não deixa de sofrer danos.
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O homem passa o dia no trabalho insatisfeito e, em casa, assiste TV. Os meios de comunicação de massa se transformaram em indústrias ideológicas
Relevância
O problema não é a pressão, sofremos pressão a todo instante em nossas vidas. A questão é que está cada vez mais difícil recarregar nossas energias. O lazer, o descanso, o happy hour estão se tornando um prolongamento do trabalho. A mais-valia não ocorre, somente, dentro das empresas, o roubo do tempo acontece, também, com a mais-valia ideológica, segundo o pensador venezuelano Ludovico Silva. Há uma homologia entre exploração material e exploração simbólica. O tempo todo o trabalhador é exposto à lógica da produção de mercadoria. É dessa forma que o capitalismo nos aprisiona, tornando-nos servos em uma sociedade sem amos.
Marx já havia sinalizado sobre a importância dos meios de comunicação na fixação da visão de mundo burguesa na sociedade. Imagino se o sociólogo alemão tivesse presenciado a incrível penetração que o rádio e a TV têm na vida das pessoas. Uma análise marxista da mais-valia, da alienação e do lazer do proletário tem que, necessariamente, abarcar uma teoria da comunicação, diz com toda razão Ludovico Silva. É certeira a afirmação de que a ideologia é produtora da consciência social da organização societária capitalista.
Engels dizia que essa consciência gerada pela burguesia e transmitida para a sociedade é uma falsa consciência. Ela é falsa por esconder sua verdadeira função: manter a dominação de classe. É difícil perceber que essa consciência é sempre determinada por alguma coisa exterior a ela. Essa é uma constatação de Freud, que Ludovico usa para discorrer sobre seu conceito de mais-valia ideológica.
Mais-valia ideológica é: "O produto necessário da alienação ideológica. A mente do homem, tal como chega a configurá-la o capitalismo mediante suas armas de comunicação diária, está repleta de valores de troca: a força do trabalho espiritual se mercantilizou, se fez mercadoria; e o homem médio do capitalismo não vê, em sua força espiritual de trabalho, um valor de uso, mas um valor de troca" (SILVA, 2013, p. 164).
O problema não é a pressão - sofremos pressão a todo instante em nossas vidas. A questão é que está cada vez mais difícil recarregar nossas energias. O lazer, o descanso, o happy hour estão se tornando um prolongamento do trabalho. A maisvalia não ocorre, somente, dentro das empresas, o roubo do tempo acontece, também, com a mais-valia ideológica, segundo o pensador venezuelano Ludovico Silva
Deve-se chamar atenção para um fato: não são, somente, os meios de comunicação os responsáveis pela disseminação da mais-valia ideológica. As igrejas, sindicatos, escolas, empresas, ONGs, enfim, aquilo que Antonio Gramsci define como aparelhos privados de hegemonia, também são vetores de transmissão ideológica. É um bombardeio diário em cima do trabalhador. A principal luta a ser travada nesse ambiente é a luta pedagógica. Somente uma consciência revolucionária pode libertar-nos desse labirinto. Ser revolucionário é denunciar todo o aparato cultural em que vivemos. A nossa própria descolonização mental é uma das tarefas mais difíceis que somos chamados a realizar.
Antonio Gramsci » Natural de Ales, ilha da Sardenha, na Itália, Antonio Gramsci (1891-1937) trabalhou, como jornalista, em publicações de esquerda. Militou em comissões de fábricas e ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano, em 1921. Conheceu a mulher Julia Schucht, em Moscou, para onde foi enviado como representante da Internacional Comunista. Em 1926, foi preso pelo regime fascista de Benito Mussolini. Cumpriu dez anos, morrendo em uma clínica de Roma, em 1937. A obra de Gramsci inspirou o eurocomunismo e teve grande influência no Brasil nos anos de 1970 e 1980.
Mas se a ideologia é produtora da consciência social, por qual caminho ela entra na mente dos homens? Uma primeira pista para responder à pergunta: a mais-valia ideológica é uma construção simbólica, que está embaixo das aparências, portanto ela se move em estado latente na consciência dos indivíduos. Daí, sua silenciosa presença na mente das pessoas, dando a falsa sensação de uma plena consciência. Esse falseamento da consciência dá a impressão dela se autodeterminar.

Freud, quando faz a radiografia do aparelho psíquico, divide o inconsciente em duas partes: o inconsciente latente e o inconsciente reprimido. O primeiro, que Ludovico Silva denomina pré-consciente, pode atingir a consciência, porque o superego não representa um dique as suas manifestações. Ainda é capaz de chegar à consciência. Já o inconsciente reprimido é incapaz de atingir a consciência por conta própria, sendo necessária a intervenção psicanalítica para que ele se revele em seus significados e mistérios. Os elementos do inconsciente reprimido estão ocultos, enquanto os do pré-consciente estão amalgamados às representações verbais.
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O lazer na sociedade é um dos indicadores do grau de desenvolvimento social e da qualidade de vida das pessoas
Mitologia
A ideologia, como um conjunto de representações verbais e audiovisuais, cria os significados que alimentam o pré- -consciente. De modo que a ideologia é uma força oculta, permanecendo em estado de latência, dando a falsa certeza de uma consciência autônoma. Nesse processo enganoso o capitalismo se apresenta como a única verdade a ser posta em prática. É uma escravidão inconsciente ao sistema, com todo o requinte de crueldade, que advém desse engano. A mais-valia ideológica, ainda segundo Ludovico Silva, extrai energia psíquica do homem. O homem se sente capaz, por meio do seu esforço e trabalho, de satisfazer todas as suas necessidades, quando, na verdade, não é ele que cria as suas necessidades, mas vai a reboque das necessidades que o capitalismo cria para ele.
Numa manobra espetacularmente benfeita, o capitalismo faz surgir a mitologia da competência, salientada por Gilberto Felisberto Vasconcellos. Essa mitologia está calcada na individualização das ações do homem, em sua busca do sucesso profissional. Uma consequência disso é a badalação em cima do conceito de empreendedor. O empreendedor é uma pessoa que sonha, estipula metas e elabora os caminhos para a execução de suas aspirações. É um homem que pratica, diuturnamente, ou, pelo menos, essa é a intenção, a ação social racional em relação a um fim. Todas as tarefas são, minuciosamente, planejadas para a consecução do seu objetivo final. Nada contra, entretanto, quando focalizamos o sucesso ou o fracasso no desempenho individual e esquecemos que o indivíduo depende, em grande parte, da estrutura social que vive, não levamos em conta que a sociedade pode ser um empecilho à realização de nossos sonhos. Sem Sociologia no horizonte do candidato a empreendedor não me espantaria, daqui alguns anos, presenciarmos uma geração de pessoas depressivas, se culpando por não ter conseguido ser um homem de sucesso.
"[...] A vivência depressiva condensa de alguma maneira os sentimentos de indignidade, de inutilidade e de desqualificação, ampliando-os. Esta depressão é dominada pelo cansaço. [...] Executar uma tarefa sem investimento material ou afetivo exige a produção de esforço e de vontade, em outras circunstâncias suportadas como um jogo de motivação e do desejo. A vivência depressiva alimenta-se da sensação de adormecimento intelectual, de anquilose mental, de paralisia da imaginação e marca o triunfo do condicionamento ao comportamento produtivo" (DEJOURS, 1992, p. 49).
Seja competente, tenha sucesso, vença. Mas o que é ter sucesso? O que é ser vencedor? O que é ter competência? A excessiva divulgação dessas palavras faz com que elas tenham uma significação padronizada associada com as conquistas, que só o capitalismo pode dar. E o capitalismo se apropria dessa força para aumentar a produção de mercadoria. Nessa trilha, claro que ocorrem ganhos e, em muitos casos, exorbitantes, mas é inegável que o indivíduo não consegue se desvencilhar do emaranhado de exigência que o sucesso coloca a ele. E isso é tão disseminado que, na ponta do processo, o trabalhador se vê embevecido com a possibilidade de se tornar um bacana.
Seja competente, tenha sucesso, vença. Mas o que é ter sucesso? O que é ser vencedor? O que é ter competência? A excessiva divulgação dessas palavras faz com que elas tenham uma significação padronizada associada com as conquistas, que só o capitalismo pode dar. E o capitalismo se apropria dessa força para aumentar a produção de mercadoria
O cara passa o dia inteiro no trabalho, insatisfeito, volta para casa, não vai querer abrir um livro nem tergiversar sobre o processo de exploração em que vive. Liga a TV e acha que está descansando. Os meios de comunicação de massa se transformaram em verdadeiras indústrias ideológicas. "[...] A indústria ideológica explora o homem naquilo que é especificamente seu: a consciência. E o explora colocando sob essa consciência uma ideologia que não é a desse homem, mas a do capitalismo, e que, por isso, produz uma alienação (ideológica). A mais-valia ideológica é, assim, dada pelo grau de adesão inconsciente de cada homem ao capitalismo. Esse grau de adesão é, realmente, um excedente de seu trabalho espiritual: é uma porção de seu trabalho espiritual, que deixa de lhe pertencer e que passa a engrossar o capital ideológico do capitalismo, cuja finalidade não é outra que preservar as relações de produção materiais, que originam o capital material [...]" (SILVA, 2013, p. 188).
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A preocupação estética representa a face da indústria da beleza. Mais uma prova de que não é o homem que cria suas necessidades, mas, sim, o capitalismo
No afã de atingir tal intento, uma legião de intelectuais midiáticos é escalada para a obra de divulgação das "verdades eternas e incontestáveis", ditadas pelo mercado. Sociedade pensada por meio de slogans criados em agências de publicidade. Imagens e pensamentos transformados em valores de troca. E para completar o quadro, essa indústria ideológica faz surgir indivíduos, que recebem esses conteúdos de forma passiva. O âncora de telejornal faz a dialética para nós. O tempo fora da empresa, que deveria ser um tempo total, um tempo livre, um tempo qualitativo para o desenvolvimento da criatividade e das potencialidades do homem, vai para o ralo. O que ocorre é que: "[...] A energia psíquica permanece concentrada nas múltiplas mensagens que o sistema distribui; permanecemos atados à ideologia capitalista e se trata de um tempo de nossa jornada, que não é indiferente à produção capitalista, mas ao contrário: é utilizado como tempo ótimo para o condicionamento ideológico [...]" (SILVA, 2013, p. 203).
Não é por acaso o aumento do consumo de barbitúricos. A sociedade tarja preta. É impressionante como aumenta o número de farmácias em nossos centros urbanos, o que é uma contradição, já que estamos numa era de obsessão pela saúde. Alimentação saudável, combate ao cigarro, ao álcool, proliferação de academias, seria de se esperar que, com uma vida mais saudável, as pessoas precisassem menos de farmácias. A preocupação estética e o cuidado alucinado com o corpo representam a face da indústria da beleza. Mais uma prova de que não é o homem que cria suas necessidades no capitalismo, mas, sim, o inverso. Ser bonito, fino, chique, rico e sarado. Nosso tempo de lazer, submetido às exigências do consumo e dos padrões de relacionamento entre homens e mulheres.
"Na vivência dos trabalhadores, a inadaptação entre as necessidades provenientes da estrutura mental e o conteúdo ergonômico da tarefa traduz-se por uma insatisfação ou por um sofrimento, ou até mesmo por um estado de ansiedade raramente traduzido em palavras, raramente precisada, raramente explicitada pelo trabalhador" (DEJOURS, 1992, p. 59-60).

A poranduba é uma prática dos índios brasileiros, na qual eles se reúnem no final de tarde e narravam os feitos do dia, com conversas, brincadeiras e lazer
Poranduba
Falar de tempo na sociedade me fez rememorar uma prática muito interessante entre os índios no Brasil. A prática a que me refiro é a poranduba indígena. Poranduba, do tupi pora'nduwa: notícia, narração, pergunta. Final de tarde, os índios reuniam-se na aldeia e, de cócoras, narravam os feitos do dia. Período, também, da conversa amena, das brincadeiras e do lazer. Era o happy hour em Pindorama, nos longínquos anos 1500. Impossível não comparar com os momentos de descanso do ser humano, que são tão ou mais importantes do que as horas dispensadas ao trabalho e que, inclusive, contribuem para a compreensão das sociedades.
A poranduba indígena tem o seu equivalente na bagaceira. Alívio aos escravos, depois de horas ininterruptas de trabalho atroz, nas lavouras de cana-de-açúcar, no Nordeste do século XVII. Pequenos instantes de alegria, do fumo de rolo, dos batuques, das danças, da comunhão com os orixás e do despertar da saudade da África distante, mas retida e sentida na memória. Melancolia. Banzo. Dando uma sapeada em nossa literatura é fácil constatar que a bagaceira entronizou mais no imaginário brasileiro do que a poranduba. Esse fato é explicável, pois a miscigenação e o sensualismo cultural de nossa grei têm início no Nordeste açucareiro. A índia não rebolava nem tinha a habilidade das mãos negras para o preparo das comidas. Há uma relação estreita entre fagos e eros. Estômago e amor. Se Hitler tivesse comido feijoada não teríamos a Segunda Guerra Mundial. Comemos mal, porque o tempo do almoço está cada vez mais curto.
A poranduba era uma prática diária coletiva fundamental, que reforçava os vínculos societários e o sentimento de pertencimento à aldeia. Trocas saudáveis de informações. Ajuda mútua, companheirismo e a certeza da continuidade da solidariedade, num mundo marcado pela harmonia do Homem com a natureza. Mas vai o aviso: não se trata aqui de fetichizar a vida indígena. Não é isso! O que importa é colocar uma lupa numa prática e numa modalidade de relacionamento, que têm se tornado raridade nos dias de hoje.
A poranduba faz falta ao ser humano. O lazer na sociedade é um dos indicadores do grau de desenvolvimento social e da qualidade de vida das pessoas. Falta- -nos esse saudável hábito da preguiça. Focamos, apenas, no trabalho, esquecendo que existem outras dimensões da existência, que devem coabitar com as obrigações e responsabilidades cotidianas. Conversamos muito pouco e não nos damos conta da falta que isso faz.
No princípio era o verbo. A cura na Psicanálise vem por meio da fala, de modo que a boca é o órgão criador de tudo. Segundo nosso folclore, existem três coisas que não voltam atrás: a bala, a flecha e a palavra. Que o tempo livre seja sempre bem em nossas vidas e que possamos transformar o ócio num parlatório criativo, para o nosso desenvolvimento permanente.
"Ou seja, já não se gera mais-valia apenas mediante a energia física, mas também - com maior intensidade a cada dia - mediante energia mental. Essa energia mental não deve ser entendida, evidentemente, como a que pode gastar a tecnocracia da 'racionalidade' capitalista (no sentido de Baran); mas também, e principalmente, a que qualquer indivíduo médio que viva na crença, especificamente ideológica, de que o mundo é 'essencialmente' um mercado, gasta diariamente no capitalismo. Em sua estrutura instintiva, diria Marcuse, está instalado um freio poderoso contra todo impulso por destruir a concepção de mundo como mercado ou, dito mais simplesmente, a colaborar na revolução contra o capitalismo [...]" (SILVA, 2013, p. 2000).
*Yago Euzébio Bueno de Paiva Junho é sociólogo e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professor de Sociologia, Antropologia e Metodologia de Pesquisa da FAI - Centro de Ensino Superior em Gestão, Tecnologia e Educação de Santa Rita do Sapucaí (MG) e autor do livro Sociologia Pau Brasil, pela Editora Multifoco. E-mail: yeuzebio@gmail.com

Referências 
DEJOURS , C. A loucura do trabalho - estudo de psicopatologia do trabalho. Tradução: Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. 5a ed. São Paulo: Cortez, 1992, 168 p. MAR X, K. O capital. Tradução: Reginaldo Sant'Anna. 31a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, v. 1. SCHU MPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico. Tradução: Maria Sílvia Possas. São Paulo, Abril, 1982, 168 p. (Os Economistas). SIL VA, L. Mais-valia ideológica. Tradução: Maria Ceci Araujo Misoczky. Florianópolis: Insular, 2013, 207 p. VASCO NCELLOS , G. F. Nossa vida de cada dia entre o supermercado e a farmácia. Juiz de Fora: UFJF, 2013, 147 p.

(Fonte: Portal Ciência & Vida / Revista  Sociologia)

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